domingo, 5 de dezembro de 2010

Mensageira da morte Molécula direciona proteínas defeituosas para destruição


                Listerina em células de levedura: papel na detecção de proteínas aberrantes 

Uma dupla de jovens pesquisadores brasileiros radicados nos Estados Unidos descobriu que, sem uma determinada proteína, os seres eucariotas, como os fungos, as plantas e os animais (homem inclusive), não conseguem desempenhar uma função vital para sua sobrevivência: destruir proteínas que foram erroneamente produzidas por suas próprias células. Organismos desprovidos da pro­teína listerina perdem a capacidade de identificar alguns tipos de proteínas aberrantes recém-fabricadas e de eliminá-las por meio do sistema de controle de qualidade das células. A conclusão faz parte de um estudo publicado no dia 23 de setembro na revista científica Nature por Claudio Joazeiro, bioquímico de 42 anos que chefia um laboratório no Scripps Research Institute, de La Jolla (Califórnia), e Mario Bengtson, de 35 anos, que ali faz pós-doutorado. A ausência da listerina leva ao acúmulo de proteínas tóxicas nas células, cujo excesso pode estar implicado no aparecimento de doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer e o Parkinson.

“Descobrimos quase por acaso o papel da listerina nesse processo”, diz Joazeiro, estudioso dos mecanismos envolvidos na regulação celular. Há alguns anos o brasileiro e o biólogo molecular Steve Kay, hoje na Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), haviam mostrado que camundongos com uma mutação no gene LISTER, responsável pela produção da proteína listerina, desenvolviam problemas nos neurônios motores da medula espinhal. Como esse tipo de desordem neurodegenerativa parece ser desencadeado pela ocorrência exagerada de proteínas defeituosas, Joazeiro e Bengtson resolveram averiguar se o gene, que é preservado em praticamente todos os organismos eucariotas, da levedura ao homem, não poderia ser importante para o bom funcionamento do processo de faxina celular. A hipótese estava correta. Conforme relatam no artigo da Nature, eles desligaram na levedura Saccharomyces cerevisiae um gene chamado LTN1 (equivalente ao LISTER) e viram que suas células eram incapazes de reconhecer e destruir algumas formas de proteínas aberrantes e acabavam morrendo. Sem a listerina, o controle de qualidade celular falhava. “Trabalhar com leveduras é barato e tem a vantagem de fornecer resultados com rapidez”, comenta Bengtson.

Os brasileiros descobriram não só o que faz a listerina, mas também como a proteína exerce seu papel de sentinela das células, de delatora da presença de proteínas defeituosas. Ela se liga aos ribossomos – a estrutura das células responsável pela síntese das proteínas a partir da informação genética fornecida pelo RNA mensageiro – e marca as proteínas defeituosas recém-fabricadas com uma espécie de etiqueta química da morte: moléculas de ubiquitina, uma família de proteínas fundamentais para o processo de regulação celular. As ubiquitinas receberam esse nome por serem ubíquas, por estarem presentes em praticamente todas as células de organismos eucariotas. Proteínas aberrantes (ou desnecessárias) que carregam esse selo químico da destruição são encaminhadas para o proteassoma, estruturas encarregadas de degradá-las e reduzi-las a cadeias químicas de uns poucos aminoácidos.

A listerina presente nos ribossomos cola as moléculas de ubiquitina numa forma específica de proteínas aberrantes: aquelas codificadas por RNA mensageiros que não apresentam o chamado códon de terminação. Um pouco de conhecimento de bioquímica ajuda a entender como ocorre esse tipo de defeito. As proteínas são formadas por uma cadeia de aminoácidos. A receita para a adição de cada aminoácido à cadeia é fornecida pelo códon, uma sequência de três bases nitrogenadas contida no RNA mensageiro. O último códon, necessário para completar a síntese de uma pro­teína, é chamado códon de terminação. “Ele diz ao ribossomo que a proteína sintetizada chegou ao fim”, explica Joazeiro. Na ausência desse códon, portanto, o ribossomo continua adicionando aminoácidos indevidamente até alcançar o final da fita do RNA mensageiro e se gera uma proteína aberrante que não pode ser corrigida pelos sistemas de controle de qualidade. Outra função exercida pelo códon de terminação é sinalizar ao ribossomo que está na hora de liberar a proteína e se separar do RNA mensageiro. “Quando não há esse códon, o RNA e a proteína ficam presos no ribossomo.” Para que não haja acúmulo de material tóxico nas células e para liberar ribossomos “empacados”, o sistema listerina-ubiquitina entra em ação e cola a etiqueta da morte na proteína defeituosa.

Há pelo menos 15 anos cientistas de vários laboratórios tentavam encontrar em seres eucariotas, aqueles dotados de células com um núcleo rodeado por uma membrana e com várias organelas, o mecanismo envolvido na identificação e eliminação de proteínas aberrantes desprovidas do códon de terminação. As buscas não davam em nada porque os pesquisadores estavam seguindo uma pista que parecia lógica e correta, mas era enganosa. Nas bactérias, organismos mais simples, procariotas (sem núcleo celular), já se sabia que uma molécula denominada tmRNA se ligava a ribossomos “entalados” com proteínas aberrantes e atuava como marcador da destruição dessas proteínas defeituosas. Durante um bom tempo, os bioquímicos procuraram nos seres eucariotas uma molécula equivalente ao tmRNA, que, imaginavam, também poderia ser a responsável por desempenhar essa mesma função. Mas a estratégia não deu certo. O sucesso só foi alcançado quando Joazeiro e Bengt­son raciocinaram de outra forma e resolveram estudar a proteína listerina.

ELA ou Alzheimer – Além de ser um avanço no conhecimento básico sobre um importante mecanismo envolvido no controle de qualidade das proteínas, a descoberta dos brasileiros pode ter implicações na área da pesquisa translacional, aquela que faz a ponte entre os achados da academia e o desenvolvimento de novos tratamentos e remédios. Em camundongos, a desativação do gene LISTER leva a distúrbio que causa sabidamente problemas neurodegenerativos. “Nossa ideia agora é tentar estabelecer a relação entre o problema verificado no camundongo e alguma doença neurodegenerativa do homem”, diz Bengtson. Ainda é cedo para tirar alguma conclusão, mas é possível especular. “Os sintomas motores e a perda de neurônios na coluna espinhal dos camundongos remeteriam à esclerose lateral amiotrófica (ELA) ou a doencas similares, enquanto o acúmulo da proteína Tau no cérebro dos animais poderia indicar Alzheimer”, opina Joazeiro.

A pesquisa translacional é um terreno conhecido dos brasileiros, especialmente de Joazeiro. Depois de ter se formado na graduação e ter feito mestrado no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), esse baiano de nascimento fez doutorado na Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD) no início dos anos 1990. Desde então estabeleceu-se na cidade californiana, um polo de biotecnologia. Trabalhou primeiro no Instituto Salk, depois na Novartis Research Foundation (GNF) e agora está no Scripps, três centros que aliam pesquisa básica e aplicada. Bengtson faz parte de sua equipe há quatro anos. “Os dois são excelentes pesquisadores”, diz Mari Sogayar, professora titular do IQ-USP que orientou o mestrado de Joazeiro e o doutorado de Bengtson. “O Claudio sempre me deixou estupefata. Fez o mestrado em apenas um ano.”

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